O aparecimento da reflexão filosófica

A reflexão filosófica foi um sistema de pensamento desenvolvido no século VI a.C. na antiga Grécia. Este artigo descreve o nascimento da Filosofia e sublinha a sua importância no início dos sistemas educativos.

Neste artigo:

A Escola de Mileto

Uma parte considerável da cultura grega não se desenvolveu inicialmente na mãe-pátria, mas nas colónias. Isto é verdadeiro em grande medida para a poesia, mas sobretudo para os aspetos científicos e filosóficos da mais precoce cultura grega (a geometria, a aritmética, a medicina, a geografia, a história e aquela pesquisa mais geral da realidade no seu conjunto que se chamará mais tarde filosofia).

Este facto não nos deve espantar: nas colónias é mais rápido o desenvolvimento no sentido das formas democráticas. São mais íntimos os contactos com as civilizações do Próximo Oriente, é mais aberta e mais crítica a mentalidade média da população, habituada à extrema variedade de costumes e crenças, de que tem experiência ou notícia através das trocas comerciais e das viagens.

Na Teogonia de Hesíodo o problema da origem da realidade já fora posto, mas a solução formulada era de natureza mítico-religiosa, não científica.

Pelo contrário, na florescente Mileto, a principal colónia jónia na Asia Menor, a especulação à volta da origem do mundo tomou outro rumo: começou-se a procurar qual poderia ser a substância fundamental e primigénia da realidade, da qual todas as outras derivaram e derivam por um processo espontâneo, sem a intervenção, nem sequer tardia, de seres sobrenaturais, mas segundo uma ordem, uma necessidade, uma lei, puramente naturais. Esta substância primitiva devia conter então em si própria uma espécie de princípio vital, pois de outra maneira não teria sido possível sair dela a realidade animada; devia ela própria ser matéria animada, donde veio a ser dado o nome de hilozoístas aos pensadores orientados nesse sentido (hyle, matéria; zoé, vida).

Tales

O primeiro deles foi Tales, que viveu nos inícios do século VI a. C. Identificou tal matéria primitiva com a água (da qual vemos formarem-se muitas outras substâncias, sejam gasosas ou sólidas, sem a qual não existe a vida e que parece ser a mais abundante matéria na Natureza, circunda, e talvez mesmo segure, as terras emersas, etc.).

Tales de Mileto foi talvez o primeiro a contribuir para o aparecimento da reflexão filosófica
Tales de Mileto

Tales, segundo a tradição mais aceitável, foi um homem prático e hábil (a anedota que o mostra escarnecido por uma mulher por ter caído num poço quando ia a olhar para as estrelas parece pertencer àquele tardio conjunto de historietas polémicas contra os filósofos que se dedicavam à especulação pura).

Foi conselheiro dos seus concidadãos e de reis estrangeiros, construtor de fortificações, capaz de ótimas especulações comerciais; parece que sabia organizar e explorar para fins práticos até as noções de astronomia e de geometria que aprendera, diz-se, com os Caldeus e os Egípcios: atribui-se-lhe a previsão de um eclipse do Sol, a medição da altura das pirâmides por meio da sombra e a da distância entre um navio e o porto.

Não é dele, certamente, o teorema geométrico que tem o seu nome, mas talvez ele já explorasse naqueles cálculos práticos a ideia de triângulos semelhantes e das proporções. Trata-se de uma prática diferente, provavelmente, do puro empirismo da geometria egípcia e mesopotâmica.

É lícito imaginar que o que interessava a Tales e impressionava os seus contemporâneos não fosse tanto a utilidade do resultado obtido quanto a elegância e o carácter geral do método usado para lá chegar.

Em resumo, há em Tales um gosto pelo livre poder do pensamento, pela sua capacidade de voos arrojados partindo de poucos factos observados ou verificados; e, inegavelmente, um voo arrojado e um tanto fantasista era a sua hipótese da água princípio de todas as coisas. Não era, contudo, uma hipótese sem qualquer justificação efetiva.

Nem pareça excessivamente ingénua a identificação do fundamento do real num elemento existente. Hoje algumas teorias cosmológicas sérias falam do hidrogénio como do elemento fundamental, apoiando-se, é certo, na física moderna, cuidadosamente ligada à observação e à experiência, mas também se lançam arrojadamente para lá das afirmações e das experiências, e correspondem ainda, de outra maneira, mas dentro do mesmo espírito naturalista, à mesma pergunta que Tales fez a si próprio pela primeira vez.

Anaximandro

Anaximandro, também de Mileto e quase contemporâneo de Tales, ao contrário deste, que não deixou nada escrito, compôs uma obra em prosa, Acerca da Natureza, de que chegaram até nós alguns fragmentos.

Anaximandro de Mileto
Anaximandro de Mileto

Foi ele o primeiro que se serviu da palavra princípio (arché) para indicar a substância única donde tudo provém e que, para ele, não é uma matéria especial, como para Tales, e mais tarde para Anaxímenes, mas o infinito ou ilimitado (àpeiron), «que tudo abraça e tudo governa».

O infinito de Anaximandro está um pouco aparentado com o caos dos mitos, com a diferença de que não é uma mistura de elementos, mas uma única substância indeterminada, da qual todas as coisas nascem por determinação ou separação dos contrários e na qual todas se dissolvem, uma vez completado o seu ciclo vital, mesmo os próprios mundos inumeráveis no tempo e no espaço.

Dissemos «ciclo vital» falando de coisas e de mundos, e não foi por acaso; em Anaximandro parece estar já a conceção, mais explícita depois em Anaxímenes, do mundo e dos astros como seres vivos. E a própria vida é um ciclo contínuo, uma contínua evolução, pela qual mesmo as espécies vivas derivam umas das outras; por exemplo, os homens descendem de animais marinhos.

O naturalismo evolucionista de Anaximandro está, no entanto, inteiramente repassado de uma profunda inspiração moral, ligada à conceção jónia da justiça e da isonomia. O universo é um cosmos, uma harmonia, como é um cosmos a pólis, e é governado por leis análogas de justiça necessária e inflexível (as coisas dissolvem-se no àpeiron, porque «pagam o tributo da sua injustiça, umas em relação às outras, segundo a ordem do tempo»).

Esta visão de legalidade universal mostra-nos como a ideia de lei natural se formou segundo o modelo da lei moral e jurídica, e não ao contrário: o homem interpreta o mundo tomando-se a si próprio como modelo. Assim fazem as crianças e os povos primitivos no seu ingénuo animismo; assim fazem os hilozoístas, mas num nível mais elevado e mais complexo, tomando como modelo (pelo menos Anaximandro) a pólis, adaptação harmoniosa da lei e da liberdade.

Anaxímenes

Anaxímenes (que viveu mais ou menos em meados do século VI) estabelece a correspondência entre o homem e o mundo mais explicitamente: «exatamente como a nossa alma, que é ar, nos sustém, assim o sopro e o ar circundam o mundo inteiro» (assim se manifestam na especulação grega os conceitos de microcosmos e macrocosmos, que terão em seguida tanta importância).

Anaxímenes de Mileto também foi decisivo para o aparecimento da reflexão filosófica
Anaxímenes de Mileto

Do ar, segundo Anaxímenes, derivam os outros elementos e todas as coisas, através do duplo processo da rarefação e da condensação: rarefazendo-se, o ar torna-se fogo; condensando-se, água e terra.

Heráclito e a crítica do enciclopedismo

Os filósofos de Mileto de que falámos não são decerto filósofos no sentido que tem hoje em geral essa palavra: grande parte dos problemas postos por eles não são hoje considerados filosóficos, mas científicos.

Eles tinham, de facto, um enorme interesse por todos os conhecimentos do seu tempo, nos quais se baseavam para realizarem as suas arrojadas sínteses. Anaximandro, por exemplo, também se ocupou de geografia e tentou a primeira representação (plana) das terras então conhecidas numa lâmina de bronze.

Este enciclopedismo foi mais encorajado do que negado pelos primeiros tímidos princípios de especialização. Hecateu, também de Mileto, que viveu pouco depois de Anaximandro, escreveu três livros de Geografia e quatro de Genealogia (a forma primitiva da história), onde abundam notícias sérias e notícias fantásticas, embora ele declare (num dos poucos fragmentos que chegaram até nós) as suas intenções críticas.

Obras deste género favoreciam o gosto enciclopédico que se ia difundindo entre os curiosos e ativíssimos Jónios da Ásia Menor.

Contra esta tendência reage Heraclito de Éfeso, que viveu em finais do século VI. Heraclito olha com aristocrático desprezo os investigadores da Natureza, que não sabem que «só existe um conhecimento: o conhecimento da Mente, que tudo governa, penetrando em tudo». Esta Mente ou Razão (Logos) é universal, mas surpreende-se em nós próprios («Eu indaguei dentro de mim mesmo», declara Heráclito), não nas aparências sensíveis, porque «a harmonia escondida é melhor do que a aparente», e aqueles que se detêm nas aparências «não entendem, embora tivessem ouvido: assemelham-se aos insensatos e a eles se aplica o dito: presentes, estão ausentes».

Heráclito de Éfeso criticou o enciclopedismo
Heráclito de Éfeso

O verdadeiro princípio da realidade, que Heráclito, em polémica com o naturalismo corrente, chama Deus, é justamente esta harmonia escondida, a harmonia dos contrários de que é tecido o mundo: «Deus é dia-noite, Inverno-Verão, guerra-paz, saciedade-fome». Esta «harmonia por tensões opostas, como a do arco e a da lira», continuamente se realiza e se quebra, pois nada há, nem pode haver, de estável, nem de fixo: «tudo corre, não é possível descer duas vezes o mesmo rio, nem tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado».

O elemento que melhor representa este perene fluir é, naturalmente, o fogo: «com o fogo se permutam todas as coisas e o fogo com todas, como os objetos com o ouro e o ouro com os objetos». E o fogo não é para Heraclito apenas um símbolo, é verdadeiramente o elemento de que tudo provém e ao qual tudo volta: «o mundo não foi criado por nenhum dos deuses, nem por nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será, fogo, eternamente vivo, que ora se acende ora se apaga».

Mas o fogo de Heráclito não é um simples elemento físico, é um elemento divino, purificador: Heraclito teria pensado já (como, mais tarde, inspirando-se nele, pensaram os estoicos) que o universo está destinado a dissolver-se no fogo (conflagração universal), o qual virá «julgar e condenar todas as coisas».

São evidentes algumas afinidades com Anaximandro neste conceito de uma lei universal de justiça e de expiação; mas a inspiração e o tom religioso dos seus fragmentos, e a insistência na interioridade e na alma, cujos limites não se podem nunca descobrir, «tão profunda é a sua razão», e que é declarada imortal e destinada a uma ulterior existência, levam a pensar numa ligação entre Heráclito e a religião dos mistérios.

A grandiosa, complexa e por vezes obscura conceção que Heraclito (chamado justamente o Obscuro) formava da realidade, exatamente como constituía, no plano do cognoscível, um repúdio do naturalismo de Mileto, representava, no plano político, uma reação às tendências igualitárias, então muito difundidas na Jónia, como eloquentemente o demonstra o seguinte fragmento:

A guerra é mãe de todas as coisas e de todas é rainha; ela destinou uns a serem deuses, outros a serem homens; de uns fez homens livres, de outros, escravos.

A Filosofia como iniciação: Os Pitagóricos

De Samos, uma ilha da Jónia não muito afastada de Mileto e de Éfeso, tinha saído uma figura singular de profeta-mago, Pitágoras, de quem sabemos bem pouco de preciso, salvo que, vindo para a Itália, fundou em Crotona uma espécie de escola-seita de carácter ao mesmo tempo sapiencial, religioso e político, que se difundiu rapidamente nas outras cidades da Magna Grécia, assumindo muitas vezes o poder político.

Isto passava-se nos últimos decénios do século VI a. C.; no século V, os pitagóricos foram varridos do Poder e muitas vezes proscritos pela ação dos movimentos democráticos, que se impuseram também na Magna Grécia. No entanto, tal situação contribuiu para a difusão da sua doutrina no mundo grego, que fora primeiro mantida secreta e unicamente revelava aos iniciados da seita, a qual exigia a vida em comum (incluída, segundo parece, também a comunhão dos bens) e a observância de um certo número de regras higiénicas e ascéticas, que era proibido modificar. Pitágoras, após a sua morte, foi considerado pelos adeptos da seita como uma espécie de santo, e a sua doutrina, transmitida oralmente entre os iniciados, objetos do mais rigoroso respeito: «Disse-o Ele» (Ipse dixit), era considerado argumento decisivo em favor de uma tese.

A Escola Pitagórica e o Orfismo

Se a escola de Mileto não era uma escola no sentido que hoje geralmente tem esse termo, porque se tratava apenas de uma direção de pensamento comum a vários pensadores em contacto uns com os outros, a pitagórica foi, logicamente, mais do que uma escola, uma associação de iniciados: e, por este prisma, lembra as seitas dos mistérios que contemporaneamente se iam difundido na Grécia, tanto mais que ela tinha em comum com estas a única crença que se pode atribuir com segurança ao próprio Pitágoras – a crença na metempsicose, ou transmigração das almas.

Escola Pitagórica

Ao lado da religião pública e oficial, existiam na Grécia cultos mais ou menos secretos, chamados mistérios. Alguns, como o de Elêusis na Ática, eram quase oficiais (estava, de facto, sob o controle do arconte-rei de Atenas). Outros, especialmente o orfismo, não estavam ligados a nenhum lugar e constituíam uma verdadeira religião substancialmente diferente da oficial: enquanto esta parecia acima de tudo preocupada com a salvação da pólis.

A preocupação central do orfismo era o destino da alma individual, considerada imortal e suscetível de se reencarnar em numerosas existências de homens e de animais, e de sofrer castigos ou viver feliz em lugares ultraterrenos.

Existiam no orfismo, como nos outros mistérios, ritos especiais de iniciação e outras cerimónias que levavam os iniciados a identificarem-se com Diónisos ou Baco, isto é, a realizarem em si o princípio do bem, visto que, segundo as crenças teogónicas próprias dos órficos, os homens teriam sido formados das cinzas dos Titãs fulminados por Júpiter, por terem devorado Diónisos: por esta razão, os homens têm dentro deles tanto o princípio do mal e da violência como o princípio do bem. Ao mesmo rito pertence a expressão órfica na qual o corpo é chamado prisão e túmulo da alma.

Os mistérios parecem ter tido uma origem rural antiquíssima, sendo, por isso, anteriores à religião do Olimpo, de carácter guerreiro e aristocrático; depurando-se, tomaram desta alguns elementos úteis, penetraram, especialmente o orfismo, em todas as classes sociais e chegaram, sempre com o orfismo, a desenvolver a interioridade: é necessária uma verdadeira conversão interior para a identificação com Deus; as práticas de iniciação exteriores não são suficientes.

Para os pitagóricos, corresponda ou não à verdade a tradição que faz de Pitágoras o inventor do termo filosofia, a purificação consegue-se através do culto do saber, de um saber que, pela sua ação, aperfeiçoada pelos seus sucessores imediatos, teve por objeto, além da crença na metempsicose, de que já falámos, os números, compreendidos como raiz e essência de toda a realidade.

A Santa Tétrade

Naturalmente, muitas ideias e noções matemáticas devem ter sido aprendidas pelos pitagóricos com os Egípcios e com os povos orientais, mas eles desenvolveram-nas com intuitos diferentes, como chaves para conhecer intimamente a realidade. O número, para eles, é uma realidade viva que nasce da oposição fundamental dos ímpares e dos pares, e são representáveis graficamente como conjuntos de pontos dispostos regularmente.

Com alguns podem formar-se quadrados (com o 4, o 9, o 16, etc.), com outros, apenas triângulos ou retângulos: a aritmética estava, em suma, intimamente fundida com a geometria, segundo módulos mais de um simbolismo místico do que de serena investigação científica.

Observe-se, por exemplo, a figura seguinte:

Santa Tétrade
Santa Tétrade

Representa a década, e de qualquer lado que se observe mostra como a década, ou seja 1+2+3+4, nasce dos primeiros quatro números naturais, que se chamam a tétrade, ou, melhor, a Santa Tétrade, considerada como fonte de toda a realidade (a década representa, simbolicamente, a natureza criada, em relação à qual a tétrade é o elemento criador).

Era sobre a Santa Tétrade que os pitagóricos prestavam juramento! Mas estas ideias não estavam de todo privadas de uma justificação sugestiva. Por exemplo: o um corresponde ao ponto; com dois pontos determina-se uma linha reta; com três, um plano; com quatro em planos diferentes, a figura de um sólido. Ou então: se estudarmos o comprimento dos pares de cordas (de igual espessura, qualidade e tensão) com que se podem obter acordes musicais, vemos que entre eles a relação é de 1/2 (para o acorde de oitava), 2/3 (para o de quinta), 3/4 (para o de quarta). E aqui temos os mesmos números em ação para gerar as harmonias sublimes da música! E não nos mostra também a astronomia como os números regulam e ordenam o movimento dos astros, a coisa mais perfeita que o homem pode contemplar?

A aritmética, a geometria e a música constituíam, por isso, para os pitagóricos os ensinamentos fundamentais, ou mathemata (que em grego significa «ensinamentos»). Pouco sabemos da maneira como estes eram efetivamente ministrados, mas somos levados a pensar que durante muito tempo a tendência teria sido para conglobar muitíssima matéria, no sentido enciclopédico, se quisermos considerar justa a crítica que Heraclito, o inimigo jurado do enciclopedismo, dirige também a Pitágoras, acusando-o de polimatia, isto é, de um ensino tendente a dar uma vasta, mas inútil, erudição em todos os campos.

Mas os pitagóricos desenvolveram também um tema caro a Heráclito e que estava bem em relação com a sua atitude geral: para eles, o bem era harmonia de opostos, a própria alma era harmonia (tema desenvolvido pela medicina: a saúde também é harmonia), ideia que parece ter sido defendida por Fililau, contemporâneo de Sócrates. Harmonia é também a vida política reta, segundo Arquita, senhor de Taranto e contemporâneo e amigo de Platão. Devemos a Arquita um argumento preciso em favor da infinidade do universo.

Os Eleatas e o virtuosismo dialético

Todos os pensadores gregos de quem falámos até agora colocavam na base das suas conceções a observação da Natureza. Argumentavam partindo de uma experiência qualquer, nem que fosse uma experiência caraterizadamente interior (Heráclito) ou uma experiência em que entravam elementos místicos e religiosos (pitagóricos). Mas na Magna Grécia, em Eleia, desenvolveu-se um pensamento com um carácter muito diferente: partindo de uma crítica violenta ao antropomorfismo religioso, negou igualmente todo o valor da experiência com o fim de reconstruir um sistema de crenças mais aceitável e apoiou-se, pelo contrário, quase exclusivamente em argumentações lógico-linguísticas.

A crítica anti antropomórfica remonta a Xenófanes de Cólofon (na Jónia) e baseia-se na extrema variedade das maneiras de os vários povos imaginarem os seus deuses:

Os Etíopes representam os seus deuses com o nariz achatado e negro, e os Trácios dizem que os deles têm os olhos azuis e os cabelos vermelhos. Mas, se os bois e os cavalos tivessem mãos e pudessem desenhar com elas e executar obras como os homens, os cavalos desenhariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes a bois, e dariam aos seus corpos as próprias formas que uns e outros têm.

Os Eleatas - Zenão
Eleatas (Zenão)

Xenófanes, ainda muito próximo do naturalismo jónio (viveu numa época pouco posterior a Anaxímenes), parece que se inclinava para uma espécie de visão panteística. Para ele, o Deus verdadeiro, que não se assemelha aos homens, nem no corpo, nem no pensamento, está como que fundido no todo e «governa todas as coisas com a força da sua mente».

Mas Parménides de Eleia onde Xenófanes ensinou, já velho, e onde morreu) desenvolveu sobretudo um lado do pensamento do mestre: o universo, isto é, o Ser, não pode nascer, nem parecer; mais ainda, não pode sequer mover-se ou mudar. De facto, «o ser é, e não pode não ser», e é contraditório pensar que qualquer coisa não seja, porque pensar em qualquer coisa significa necessariamente que ela é. O não-ser é impensável, por isso mesmo que o vazio é impensável, e bem assim o devir, e a mudança, tudo aquilo, em suma, que implica não ser. Os sentidos e o conceito dizem-nos que as coisas nascem e morrem, mas o caminho da Verdade, que só o puro pensamento pode atingir, leva-nos, pelo contrário, a crer que a realidade é plena e completa e eterna, que nela não há nascimento, nem morte, não há partes, nem mudanças qualitativas.

O Ser é, portanto, uma espécie de esfera compacta e homogénea. Assim parece querer concluir Parménides, contra toda a evidência sensível, com base em argumentações puramente lógicas, ligadas essencialmente à impensabilidade do não-ser.

Um discípulo de Parménides, Zenão de Eleia, foi o grande polemista da escola. Também ele se servia essencialmente de argumentos lógicos, segundo um método que se chama dialético e que consiste em admitir como hipótese a afirmação do adversário para tirar dela, logicamente, conclusões absurdas que a confutam. Assim, Zenão admite hipotética mente a multiplicidade e o movimento para demonstrar o absurdo de ambas as coisas.

Aquiles e a Tartaruga

Escogitou desta forma toda uma série de argumentos, dos quais o mais famoso é o de Aquiles e a tartaruga, dirigido contra a realidade do movimento.

Aquiles e a tartaruga
Aquiles nunca alcança a tartaruga

Se uma tartaruga tiver um passo de avanço sobre o veloz Aquiles que a persegue, nunca será alcançada por ele, porque, antes de a alcançar, Aquiles terá de ocupar a posição precedentemente ocupada pela tartaruga, que, entretanto, se terá deslocado, por muito pouco que seja, e assim por diante: então a distância entre Aquiles e a tartaruga não se reduzirá nunca a zero, embora se torne cada vez mais pequena.

Não importa que os sentidos nos mostrem o contrário: o que importa é que o movimento é irracional, pois que o concebê-lo leva a conclusões absurdas, e vã e inútil é, por isso, a obra daqueles que (como os pitagóricos) se cansam a interpretá-lo por meio dos números. Note-se que a argumentação de Zenão se baseia na pressuposição de que para percorrer distâncias infinitas é necessário um tempo infinito: na realidade, se as distâncias forem infinitesimais, exigirão tempos infinitesimais, cuja soma é finita. A enorme importância de Zenão está em ter obrigado os matemáticos posteriores a ele a elaborar os mais subtis conceitos indispensáveis para nos libertarmos dos seus paradoxos.

O Ser e o Devir: As soluções de Empédocles e de Anaxágoras

A exigência expressa pelos Eleatas é mais profunda do que pode parecer à primeira vista. Por um lado, de facto, é bem verdade que só se pode conhecer aquilo que é estável. Se imaginássemos um mundo onde tudo mudasse verdadeiramente, quem poderia dizer ou esperar conhecê-lo? Mas o mundo está, na realidade, sujeito a mudanças, e, todavia, nós aspiramos a conhecê-lo, e em certa medida o conhecemos já.

Isto significa, argumenta Empédocles de Agrigento, que existe qualquer coisa de estável, ou, melhor, que existem várias substâncias estáveis, qualitativa e quantitativamente imutáveis, e que, no entanto, se têm de admitir como podendo mover-se e misturar-se, movidas por forças: tais forças são o Amor, ou amizade, e o Ódio, ou a discórdia, que incessantemente misturam e separam os elementos ou raízes em que cada coisa consiste ou de que é composta, e que ele identifica, segundo a física simplista dos antigos, como o fogo, o ar, a água e a terra.

Empédocles de Agrigento
Empédocles de Agrigento

Quando domina o Amor, temos o esférico perfeitamente homogéneo, no qual todas as coisas se fundem; quando domina o Ódio, temos o caos.

O Ódio e o Amor predominam alternadamente, determinando grandes cielos cósmicos. O conhecimento humano é possível, porque no homem existem os quatro elementos e as duas forças, e é válido o princípio de que o semelhante conhece o semelhante. Estas doutrinas foram expostas por Empédocles num poema intitulado Acerca da Natureza e num canto, as Purificações, que até no título revela a influência órfico-pitagórica.

Quase contemporâneo de Empédocles foi Anaxágoras de Clazómenas, introdutor da filosofia em Atenas, para onde foi no tempo de Péricles, de quem se tomou amigo e mestre. Acusado, porém, de impiedade pelos inimigos de Péricles (parece que com o pretexto de que as suas teorias físicas, como, de resto, as teorias de todos os outros naturalistas, negavam carácter de divindade ao Sol e à Lua), teve de voltar para a Jónia. Avança uma solução afim da de Empédocles: entidades permanentes, mas móveis, e uma força ordenadora manifestam a realidade, tanto do ser como do devir. Faltam, no entanto, em Anaxágoras os aspetos mágico-religiosos presentes em Empédocles: escreve em prosa, num tom calmo e ponderado, e deseja explicar da maneira mais persuasiva a extrema e mutável variedade qualitativa do mundo de que temos experiência.

As entidades permanentes qualitativamente diferentes são muitíssimas, subdivididas em partes infinitesimais, e por isso invisíveis, a que ele chama sémenes e a que Aristóteles chamará homeomeria, isto é, partículas semelhantes. «Em todas as coisas existem partículas de todas as coisas», mas em proporções diferentes, de maneira que a coisa assume o aspeto das partículas que prevalecem, e muda de aspeto se perde essas partículas em quantidade suficiente para que homeomerias de outro tipo alcancem predominância.

Queimando um bocado de madeira dispersamos no ar as partículas próprias da madeira; prevalecem então as do carvão, que lhe dão o seu aspeto; por fim, também estas se dispersam, e prevalecem as da cinza. Mas nada foi destruído: a morte ou destruição não é mais do que separação, um nascimento, uma nova associação.

Partículas invisíveis

As partículas invisíveis (ou «apenas visíveis para a mente») podem, associando-se novamente em número suficiente, voltar a tornar-se visíveis para os olhos; dizemos então, por exemplo, que nasceu uma nova planta, com outra madeira. Mas quem ordena este eterno processo em que nada se cria e nada se perde, nascendo e morrendo as coisas, todavia, continuamente? Não são duas forças, como para Empédocles, mas uma só, o Intelecto ou Mente (Nous), que, segundo Anaxágoras, move o universo. Move-o sem esforço, mas com infinita perfeição, única e perfeita ela própria, penetrando em tudo.

Anaxágoras

Entretanto, Anaxágoras tendia a limitar a intervenção direta da Mente nos casos impossíveis de explicar de outra maneira, preferindo, sempre que possível, explicações puramente naturais; resumindo, preferia reduzir a Mente ao papel de ordenadora inicial, em vez de lhe atribuir o de uma contínua ação providencial: por isso, o seu ensino foi considerado, não só pelos seus acusadores, mas também por Platão e por Aristóteles, como essencialmente naturalista.

Os Atomistas

Vimos, nos naturalistas até agora tratados, um progressivo afastamento, nas suas conceções gerais, da experiência sensível imediata, mesmo quando, como em Anaxágoras, há o máximo cuidado de, em última instância, justificar aquela em toda a sua variedade qualitativa.

Mas o máximo esforço de abstração neste caminho será feito pelos atomistas, os quais chegarão ao ponto de negarem o qualitativo, interpretando as qualidades sensíveis como um nosso modo subjetivo de sentir uma realidade que é em si mesma puramente quantitativa.

Trata-se ainda de partículas pequeníssimas, cuja existência não pode ser atingida com os sentidos, mas apenas com a razão. Tais partículas são imutáveis, indivisíveis (átomos), diferentes entre si somente pela forma e pelo tamanho; isto é, são puro espaço cheio, ou sejam porçõezinhas mínimas de espaço cheio colocadas dentro do espaço vazio e privadas por completo de determinações qualitativas: as qualidades sensíveis são devidas unicamente à sua forma, ao tamanho, à ordem, à posição, ao movimento.

Uncinados e tais que aderem entre si nos sólidos, redondos nos fluidos, os átomos são a única realidade: de átomos redondos e pequeníssimos são também constituídos o fogo, a luz, a própria alma, que, por isso, se dispersa com a morte do corpo. As associações e divisões dos átomos não são ordenadas por nenhuma força ou intelecto superior aos próprios átomos, mas unicamente pelo seu próprio movimento, provindo de um misterioso vórtice original. Ê por isso que Dante fala de Demócrito como daquele «que em questão o mundo põe».

Mas Demócrito de Abdera é um contemporâneo de Platão, e não teríamos falado nele aqui se a sua doutrina não fosse geralmente considerada como um desenvolvimento da de um filósofo mais antigo, Leucipo (talvez de Mileto), contemporâneo de Empédocles e de Anaxágoras.

Não sabemos qual tenha sido a contribuição de Leucipo; mas é seguro que a doutrina como acima foi delineada comporta um esforço de abstração que só um cérebro treinado na matemática, como o de Demócrito, podia levar até ao fundo.

O Atomismo (Filosofia Grega)

Não se julgue, porém, que o atomismo fosse, nem mesmo em Demócrito, uma verdadeira hipótese científica, como o será nos tempos modernos.

No entanto, não há tentativa nenhuma para fazer uma demonstração experimental, nem de simples observação, da necessidade da hipótese atomista; pelo contrário, é claramente dito que os átomos exclusivamente podem ser conhecidos pela razão, nunca pelos sentidos, nem mesmo indiretamente.

O aspeto científico encontra-se, porém, na cuidadosa justificação de toda a experiência sensível em todos os seus aspetos, baseada na arrojada conceção geral; o interesse principal dirige-se, segundo parece, para a moral que se pode conceber com base neste rigoroso naturalismo, que já não admite intervenções divinas ou castigos e prémios ultraterrenos.

O homem tende para o prazer, mas essencialmente para o prazer da alma (entendida à maneira naturalista), que é o único bem verdadeiro e igual para todos os homens.

A virtude deve ser praticada por ela própria e é o prémio de si mesma, no foro íntimo da consciência:

Não digas, nem faças, o mal, mesmo se estiveres sozinho: aprende a envergonhar-te muito mais de ti próprio do que dos outros. Ê uma infelicidade muito maior praticar a injustiça do que sofrê-la.

A esta decidida interiorização da moral corresponde uma decidida orientação para o cosmopolitismo: «da alma virtuosa é pátria o mundo inteiro».

Assim, o naturalismo jónio, nascido na pólis e sobre ela modelado (Anaximandro), supera os seus limites, ou, melhor, supera todos os limites de espaço e de tempo, nestas rigorosas afirmações da autonomia e da universalidade dos valores morais, que Demócrito desenvolveu, segundo parece, a partir dos ensinamentos do jónio Leucipo.

Índice da História da Pedagogia

INTRODUÇÃO

CULTURA E EDUCAÇÃO NA ANTIGUIDADE

Referências

  • História da Pedagogia, N. Abbagnano e A. Visalberghi, 1957, Capítulo IV – O Aparecimento da Reflexão Filosófica e as suas Primeiras Aplicações Educativas
  • WorldHistory.org – Greek Philosophy